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A construção do género na infância e a questão da equidade de género - Parte I
Outubro, 2008
Clarinda Pomar, Centro de Investigação em Educação e Psicologia
www.ciep.uevora.pt

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Introdução

  As diferenças sexuais, que no momento do nascimento, ou mesmo antes, são expressas através das frases "é um menino" ou "é uma menina", configuram uma complexidade de processos de natureza biológica, psicológica e social, em ordem à categorização mais básica e primária da nossa sociedade, a categorização de género, ou seja a repartição dos indivíduos nas categorias sociais homem e mulher, representadas por diferentes características físicas, psicológicas, comportamentais e relacionais.

  Não pretendendo descurar os possíveis determinismos biológicos, podemos afirmar que ser e tornar-se rapaz ou rapariga pressupõe um complexo e multidimensional processo de aprendizagem sociocultural desenvolvido a vários níveis do relacionamento social - na família, na escola e na sociedade em geral. O conceito de género (ao invés de sexo) vem precisamente reforçar o carácter sociocultural da diferenciação entre rapazes e raparigas reconhecendo-o como um processo construtivo dinâmico e individualizado. Será então importante, desde já, salientar que cada criança não é só rapaz ou rapariga, mas sim "um rapaz" ou "uma rapariga", com traços comuns que a identificam num determinado grupo de género, mas certamente também, com singularidades que a distinguem de todas as outras.

  Se até meados do século passado, a adopção e conformidade aos padrões e papéis de género associados directamente ao sexo era, inquestionavelmente, sinónimo de uma adaptação saudável à sociedade, a partir essencialmente da década de 60, estudos desenvolvidos no âmbito da investigação psicossocial feminista começaram a problematizar a aceitabilidade e a desejabilidade social destas diferenças, apontando o dedo a assimetrias e hierarquias de poder entre os géneros que comprometiam o pleno desenvolvimento individual, em especial o das raparigas e mulheres.
  Volvidos quase 50 anos, a questão da igualdade de género assume um papel central em qualquer agenda social, política ou educativa sendo considerada um pilar fundamental para o desenvolvimento sustentável de qualquer sociedade. Sublinhe-se ainda que, cada vez mais se utiliza o termo equidade de género, conceito detentor de um significado mais completo e abrangente, representando não só a igualdade de acesso e de oportunidades entre rapazes e raparigas, homens e mulheres, como também a liberdade de participação num contexto inclusivo e plural, valorizador dos percursos e experiências de ambos os géneros e respeitador das múltiplas identidades, não só sociais como individuais. A tradicional dicotomia entre igualdade e diferença é, desta forma, superada mediante a convergência e complementaridade destas duas noções: a igualdade só se consegue através do respeito e valorização da diferença.
  Desta maneira, e contrariamente a outros aspectos do desenvolvimento humano, a compreensão dos processos de desenvolvimento do género não pode ser apenas considerada uma curiosidade científica, trazendo subjacente uma dimensão valorativa que passa pela procura de conhecimento que legitime certas tomadas de decisão política e possibilite a implementação de práticas sociais e educativas verdadeiramente promotoras da equidade de género. Este será, certamente, um dos grandes desafios da nossa sociedade.
  Pretendemos, neste espaço, analisar alguns resultados da investigação sobre o desenvolvimento da diferenciação de género na infância procurando, nomeadamente, responder à seguinte questão: quais são as características e padrões de comportamento que singularizam e particularizam cada grupo de género?

  I) A investigação sobre a diferenciação de género: comparar para compreender e... desmistificar
  A investigação sobre a diferenciação de género tem conhecido, ao longo do tempo, várias abordagens. Numa primeira fase efectuaram-se exames comparativos procurando-se determinar a extensão e a natureza das diferenças entre rapazes e raparigas e homens e mulheres, numa série de capacidades e características comportamentais. Porque este trabalho inicial procurava diferenças dicotómicas em paralelo com as categorias biológicas homem e mulher, é frequentemente designado por investigação sobre as diferenças sexuais (Deaux, 1984).
  A clássica revisão de estudos de Maccoby e Jacklin (1974) ocasionou, na altura, alguma perplexidade, revelando que no domínio cognitivo apenas se comprovavam diferenças em três áreas: superioridade dos rapazes nas capacidades matemática e visuo-espacial e superioridade das raparigas nas capacidades verbais. No domínio do comportamento social apenas se poderia constatar uma diferença atribuída ao sexo: os rapazes eram mais agressivos que as raparigas em todas as idades e culturas. Contrariamente às crenças populares, não se encontraram evidências significativas que permitissem concluir que as mulheres eram mais sociáveis e influenciáveis, ou que os homens estavam mais capacitados para a realização de tarefas complexas com mais exigências ao nível do pensamento analítico. Também não se provou a existência de diferenças entre os sexos quanto à ansiedade, competitividade, obediência, criatividade e nível de actividade motora.
  Estas conclusões motivaram a realização de uma grande quantidade de estudos com o objectivo de averiguar a sua fidelidade e consistência. A meta-análise de Palácio-Quintin (1996), vinte anos depois, veio confirmar, no essencial, as conclusões de Maccoby e Jacklin. O aspecto que se revelou mais significativo foi a variação nas habilidades verbais e espaciais, com melhores desempenhos das raparigas e dos rapazes, respectivamente, em particular na idade pré-escolar. Na idade escolar as diferenças atenuavam-se e essa variação era uma função das funções linguísticas analisadas, das tarefas consideradas bem como da interacção com outras variáveis socioculturais. No plano da agressividade pareceu confirmar-se a maior presença de agressividade física nos rapazes, mas, na agressividade verbal, rapazes e raparigas pareciam manifestar a mesma frequência.
  Acima de tudo, os estudos vieram confirmar as grandes similaridades cognitivas e comportamentais entre o sexo feminino e o sexo masculino. Em quase todos, a variabilidade encontrada nessas diferenças, atribuível ao sexo, era inferior a 5%, o que originou explicações fundamentadas essencialmente em factores socioculturais.
  Com efeito, embora esta questão das diferenças de género reportadas a factores biológicos não tenha perdido a actualidade, continuando a ser um campo de investigação promissor (e.g. Udry, 2000; McHale et al., 2004 ) e que parece obter uma forte curiosidade por parte dos media e da população em geral, quando se analisam criteriosamente os resultados são encontradas, com relativa facilidade, interacções com outros factores socioculturais, como os estereótipos de género, ou seja, as crenças acerca dos modos de ser e de estar de homens e mulheres (Amâncio, 1994).
  A exploração dos factores socioculturais implicados no desenvolvimento das características comportamentais consideradas mais apropriadas a cada género foi outro dos trilhos da investigação sobre a diferenciação de género. Neste domínio, a investigação tem demonstrado (e.g. Huston, 1983; Turner, Gervai & Hinde, 1993, Martin, Ruble, & Szkrybalo, 2002) que o desenvolvimento dos padrões comportamentais masculinos e femininos é um processo multidimensional que integra várias dimensões, nem sempre relacionadas, como actividades e interesses, características psicossociais, relacionamento social e características simbólicas (como por exemplo, gestos, comportamento não verbal ou padrões de linguagem).
  Os comportamentos socialmente padronizados, como a preferência por brinquedos e actividades, são observáveis bastante cedo, entre os 12 e os 18 meses (e.g. Weiraub et al, 1984). Nos jogos dramáticos, enquanto as raparigas preferem, com mais frequência, desempenhar papéis associados às actividades domésticas, à família e à profissão, os rapazes preferem, em geral, temas de aventura nos quais desempenham uma grande variabilidade de papéis caracterizados pela fantasia e pelo poder e com grande dose de actividade física (Thorne, 1993). Os estudos também nos indicam que, enquanto os rapazes, ao longo da infância, vão intensificando as suas preferências por brinquedos e actividades socialmente apropriados ao seu género (Pitcher & Shultz, 1983; Turner, Gervai & Hinde, 1993), as raparigas apresentam uma maior flexibilidade comportamental parecendo estar mais facilitada a transgressão dos papéis de género (provavelmente porque menos punida socialmente) (Thorne, 1993; Swain, 2005).
  O tipo de jogo que a literatura fa sobre a diferenciação de género geralmente aponta como diferenciador do comportamento motor e relacional de rapazes e raparigas, na infância, e nas mais variadas culturas, é o rough-and-tumble play, termo usado para designar o conjunto de comportamentos de jogo caracterizados por lutas e perseguições, mas que se distinguem da luta real ou de outros comportamentos orientados para a agressividade, pois, embora haja contacto físico, o conflito é imaginário (Neto & Marques, 2004). Este tipo de jogo, bastante frequente nos recreios da escola entre rapazes, possui uma grande importância na organização social na infância, especialmente para os rapazes, constituindo-se como um dos meios de afirmação da masculinidade hegemónica (Renold, 1997).
  Apesar de grande parte desta literatura tender a publicitar as diferenças, investigação mais recente tem possibilitado salientar a grande variabilidade inerente aos padrões de comportamento masculino e feminino, a qual ultrapassa por vezes a variabilidade entre os dois grupos de género, reconhecendo e enfatizando as distintas formas de se ser rapaz (e.g. Parker, 1996; Renold, 2001) ou rapariga (e.g. Reay, 2001). Esta variabilidade parece ser ainda uma função do contexto sociocultural onde ocorre esse comportamento, havendo contextos que parecem apelar mais a uma prática diferenciada do que outros, como é o caso do recreio da escola que aparenta ser o meio que mais potencia a diferenciação de género na infância (Thorne, 1993; Swain, 2005).
  O género é um dos componentes estruturantes da identidade pessoal e social de qualquer um de nós, cuja manifestação só pode ser entendida em interacção com as muitas outras dimensões da vida sociocultural, mas também com os componentes do crescimento físico e do desenvolvimento cognitivo e afectivo-emocional, dotando este processo de uma inevitável singularidade e variabilidade. Devemos, deste modo, evitar reduzir a problemática do género às concepções estáticas e dicotómicas de masculinidade e feminilidade bem como procurar reagir firmemente à ideia de inevitabilidade da diferença, principalmente quando assente em juízos de valor comparativos que invariavelmente transmitem expectativas diferenciadas quanto aos comportamentos, desempenhos e competências de rapazes e raparigas.
  Este enfoque sobre a variabilidade associada ao género leva-nos a reflectir sobre o grande desafio da sociedade em geral, e da escola em particular, que passa por acomodar e dar resposta à individualidade no seio da diversidade e da pluralidade, livre de constrangimentos e de crenças estereotipadas.

  Na segunda parte analisaremos alguns dos processos sociocognitivos implicados no desenvolvimento do género na infância reflectindo sobre as suas implicações para a equidade de género. Procuraremos dar resposta a questões como as seguintes: Quais as concepções das crianças acerca do que é ser feminino e masculino? Como é que as crianças aprendem os papéis de género? Qual o efeito mediador destas concepções nas suas percepções e comportamentos?

Referências bibliográficas
Amâncio, L. (1994). Masculino e feminino: A construção social da diferença. Porto: Edições Afrontamento.
Brannon, L. (2005). Gender: Psychological perspectives (4ª Ed.). Boston: Allyn and Bacon.
Deaux, K. (1984). From individual differences to social categories: Analysis of a decade’s research on gender. American Psychologist, 39 (2), 105-116.
Huston, A. (1983). Sex-typing. In P.H. Mussen (ed.), Handbook of child psychology. Vol IV-Socialization, personality and social Development (4ª ed.) (pp.387-466). NY: John Wiley & Sons, Inc.
Maccoby, E. & Jacklin, C. (1974). The psychology of sex differences. Stanford, CA: Stanford University Press.
Martin, C. ; Ruble, D. & Szkrybalo, J. (2002). Cognitive theories of early gender development. Psychological Bulletin, 128, 903-933.
McHale, S. et al. (2004). Developmental and individual differences in girl’s sex-typed activities in middle childhood and adolescence. Child Development. 75(5), 1575-1593.
Neto, C. & Marques, A. (2004). A mudança de competências motoras na criança: A importância do jogo de actividade física. In J. Barreiros et al. (Eds), Desenvolvimento e aprendizagem: Perspectivas cruzadas (pp.1-27). Cruz Quebrada: Edições F.M.H.
Palácio-Quintin, E. (1996). Développement des filles et des garçons, quelles différences? Bulletin de Psychologie, 49(424), 371-382.
Parker, A. (1996). The construction of masculinity within boys’ physical education, Gender and Education, 8(2), 141-157.
Pitcher, E. & Schultz, L. (1983). Boys and girls at play: The development of sex roles. NY: Bergin & Garvey Publishers.
Reay, D. (2001). "Spice girls", "nice girls, "girlies, and "tomboys": Gender discourses, girls’ cultures and femininities in the primary classroom. Gender and Education, 13 (2), 153-166.
Renold, E. (1997). "All they’ve got on their brains is football": Sport, masculinity and the gendered practices of playground relations. Sport, Education and Society, 2 (1), 5-23.
Renold, E.. (2001). Learning the "hard" way: Boys, masculinity and the negotiation of learner identities in the primary school. British Journal of Sociology of Education, 22 (3), 269-385.
Swain, J. (2005). Sharing the same world: boys’ relations with girls during their last year of primary school. Gender and Education, 17 (1), 75-91.
Thorne, B. (1993). Gender play: girls and boys in School. Buckingham: Open University Press.
Turner, P.; Gervai, J. & Hinde, R. (1993). Gender-typing in young children: Preferences, behaviour and cultural differences. British Journal of Developmental Psychology, 11, 323-342.
Udry, J.R. (2000). Biological limits of gender construction. American Sociological Review, 65, 443-457.
Weinraub, M. et al. (1984). The development of sex role stereotypes in the third year: Relationships to gender labelling, gender identity, sex typed toy preference, and family characteristics. Child Development, 55, 1493-1503.
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