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Ler uma história...

 



O Zé Botarras (1ª parte)

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  – Já saiu toda a gente, Alice?

   – Suponho que sim, D.ª Alda... só não vi no Cantinho da Leitura.

   Efectivamente, a um canto, alguém estava debruçado sobre um livro, indiferente às horas de saída. Era o José Miguel.

   Zé Botarras para os amigos. Migas para a mãe. E simplesmente José para o pai. Frequentava o 10.º ano numa das secundárias da terra e já não era a primeira vez que a funcionária via aquele corpo esguio, vestido de preto, sentado ali naquele canto da biblioteca.

   Agora que o via de pé, Alice lembrava-se que aquela mesma figura lhe tinha despertado a atenção há dois ou três dias atrás. O mesmo corte de cabelo, o mesmo blusão e aquele pormenor da tira de cabedal no pulso. Alice estava certa. Só achava estranho aquele isolamento. Sim, porque além de ir sozinho, só procurava a biblioteca em horas mortas.

   – Vá lá, menino! Tencionas dormir cá? Se quiseres, podes requisitar o livro e acabar de lê-lo em casa.

   Que não, mas "muito obrigado" e que desculpasse aquele esquecimento... havia livros assim! Não saiu sem repetir novamente o pedido de desculpas. A um canto, D.ª Alda assistia interessada àquelas cortesias algo despropositadas num rapaz de estranha aparência.

   – Delicado este rapaz!

   – É verdade, D.ª Alda – dizia a Alice encaminhando-se para a porta de saco na mão – Não é todos os dias que se encontra um rapaz com aquelas maneiras. Mas reparou naquelas botarras?! Parecem do exército! Bem... ainda demora?

   – Vou só dar uma espreitadela, não vá ficar alguma coisa ligada. Vá andando, Alice, saio já atrás de si.

   Diligente, a bibliotecária confirmou as luzes e as janelas e, quando passava pelo Cantinho da Leitura, reparou numa folha solta sobre a carpete. Impressa, páginas 31/32 de qualquer livro... mas de qual? Virou-a dos dois lados, mas não havia indicação de título ou autor. Soltou-se, concluiu a bibliotecária com a folha na mão; os livros de hoje já não são o que eram, ou então o defeito era das mãos dos leitores, bem mais bruscas hoje em dia. Optimista, preferiu pensar que o problema era da segurança das lombadas e já congeminava uma forma de tirar partido pedagógico da situação.

   Simples: promovia um concurso para descobrir o pé da Cinderela. Sim, porque em 22 000 volumes, era difícil descobrir qual o livro que não tinha as páginas 31/32 e, quem quer que tenha sido, havia folheado nesse mesmo dia o exemplar. Apelaria, assim, à descoberta e com direito a prémio. Com este novo projecto na cabeça, deixou, finalmente, a biblioteca.

   Era Inverno, escurecia mais cedo e a vila enchia-se de luzes. Nas ruas e nas casas. No quarto, José Miguel aguardava que a mãe acabasse o jantar. Tinha, como sempre, programa à noite com os colegas e, apesar de se perder nas horas com os livros, gostava de pontualidade nos encontros com os da sua idade, para depois se perder também nas horas com eles. A mãe bem recomendava "Volta às onze, o máximo", mas davam muitas vezes as doze badaladas e o José Miguel sem estar em casa. Aos fins-de-semana a situação piorava um pouco. A mãe, habituada até aí a um filho reservado, mas cumpridor e pacato, atribuía às recentes companhias do filho a razão dos seus hábitos nocturnos.

   – O Migas mudou muito – era a sua voz a desabafar para o marido – desde que se meteu com aquele grupo do Bairro dos Cabeçudos. Se era calado connosco, mais calado ficou. E a roupa, Chico... só lhe lavo e passo peças pretas! Salvam-se as cuecas no meio daquela rouparia toda. E o cabelo?!... E a linguagem... Por acaso já o ouviste falar ao telefone?! Parece conversa de latrina, quase outra língua!

   – São fases, Assunção! – conciliava o marido, sem deixar de olhar para o jornal desportivo – Mais uns anitos em cima e tudo isso passa. Quando andar na universidade...

   – Se não se perder pelo caminho! Eu não o vejo pegar num livro e olha que as notas do 1º período não foram grande coisa!

   – Está numa escola nova... e olha que o rapaz lê! Sabes de onde é que o vi hoje sair às seis e tal? Da Biblioteca Municipal! Isso mesmo! O teu rapaz também anda metido com livros. Se calhar, agora no quarto, está de volta deles!

   – Ou a olhar para o relógio à espera da hora de jantar! Ele quer é sair! – arriscava, não convencida, a D.ª Assunção.

   Enganavam-se os dois. José aparece nesse momento à entrada da cozinha, reclamando pela escova de engraxar calçado. É que estivera de volta das botas e gostava delas a brilhar.

   – Deves querê-las que nem espelhos para penteares essa madeixa! A escova está ali junto do tanque. – diz a mãe, tirando as últimas batatas da fritadeira.

   Que deixasse o cabelo e as botas... e acabasse antes o jantar, que a fome apertava.

   – E os amigos também!... ’Tá bem, vamos lá para a mesa!

   Jantaram calados e José saiu. Lustroso, madeixa a preceito, fez-se a caminho da casa do Sampaio. Dali partiram para o café da Estrelinha onde o grupo já devia estar. A música estava ligeira nessa noite, ainda menina, e, entre cigarros e cervejas, foram desfiando as aventuras da tarde. O Teixeira tinha estado a curtir umas músicas do último CD dos Nirvana... com a miúda, claro!... Onde?! Onde havia de ser?!! Na sala de estar dos Teixeiras, óbvio! O Alferes tinha andado de volta do trabalho de História que já deveria ter sido entregue há duas semanas. Que seca!... Limitou-se a copiar umas coisas de uma enciclopédia... e nem capa punha...o Macaco-pré-histórico não merecia mais! O Sampaio tinha andado a experimentar a Scooter da Nelas e tinha dado cá um speed na Av. 25 de Abril! As miúdas não sabiam apertar no acelerador!

   – E o Zé Botarras? A cismar com a Rosa, hem?!

   Que nem pensasse nisso, toda a tardinha em conversa com uns tipos porreiraços que não via desde o ciclo.

   – Quem? Chuta daí, ó Zé! – insistiram os colegas. Limitou-se a responder que não conheciam. Da ida à biblioteca nem uma palavra. O que diriam dele! Há coisas que não se podem dizer em nenhum sítio. Mesmo assim, com todas as suas cautelas, já tinham descoberto a sua paixoneta pela Rosa. Só porque um dia o apanharam a desenhar um botão. Que coisa mais careta! P’ró que lhe havia de dar: desenhar e pintar uma rosa! E tinha ficado linda! Fraquezas perigosas para um adolescente de 15 anos... de negro vestido. O que não diriam eles se soubessem que costumava gastar três ou quatro horas por semana na biblioteca?! Um perfeito betinho! Ainda por cima a ler letra miúda. Ainda se fossem revistas musicais ou Banda Desenhada! Estava decidido... nem uma palavra para eles. Até porque se divertia à brava com esta trupe do Bairro dos Cabeçudos. Fixes! Loucos a valer!

   No outro dia, à mesma hora, lá estava o José Miguel na biblioteca. Precisava de ler o último livro de Tom Sharpe e tinha mais descanso ali no fim da tarde, sem os amigos ou a mãe por perto. Depois... andar com um livro debaixo do braço não fazia o seu estilo e sabe-se lá o que a Rosinha diria se o encontrasse.

   – Com que então a acabar de ler o livrinho! – pergunta-lhe a Alice sorridente, reconhecendo o cliente atrasado do dia anterior.

   – Olha, dá uma vista de olhos ao anúncio do concurso que está no átrio. Pode ser que ganhes, já que és um leitor assíduo!

   José Miguel desejava que esta última frase tivesse sido mais discreta. Sabe-se lá quem poderia tê-la ouvido na sala. E estava na sua hora de clandestinidade. Concurso... foi ver o que dizia.

PÁGINA SOLTA
À PROCURA DO SEU LIVRO

Queres ajudar esta página? Soltou-se do seu livro e foi encontrada desolada e orfã no chão da biblioteca. Se fores um leitor atento, podes dar-lhe uma ajudinha!

COMO?

Talvez pelo tipo de linguagem
Talvez por referências dispersas do texto

Vai eliminando hipóteses:

ficção ou ensaio?
nacional ou estrangeiro?
recente ou antigo?

   Se descobrires ou quiseres dar um palpite, dirige-te à bibliotecária. Há um prémio para o primeiro que acertar.


(Continua…)

Natália Caseiro
Os devoradores de livros
Leiria, Editorial Diferença, 1999
(Excerto)
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